Retrato de uma mulher brasileira
O olhar de uma moradora sobre a vida no assentamento do Manchester, em Bauru
Texto e fotos: Edusa
Eduarda Cardoso, estudante 3º ano de jornalismo
Com 27 anos e uma filha de 9, Samantha dos Anjos abre a porta para receber quem precisa. Mas não é tão fácil chegar à casa dela, localizada em um assentamento do bairro Manchester em Bauru. O ônibus passa a dois quilômetros dali, e é preciso subir o “estradão” para chegar ao assentamento, de ruas não asfaltadas e moradias com numeração improvisada.
A reportagem chega ao local às 9h. Mas o dia de Samantha começa muito antes. Às 6h está de pé: faz café, compra pão, dá comida para as galinhas e os porcos e, ainda, limpa a igreja que frequenta. No entorno de sua casa, há uma espécie de bosque, com árvores, passarinhos, galinhas soltas e plantas que a moradora cultiva – pés de morango e acerola. O terreno não pertence à Samantha, assim como ocorre com outras 23 famílias assentadas no local. A condição irregular faz as moradoras conviverem com a insegurança de perderem suas casas, de serem expulsas dali. Outros medos e transtornos frequentam o cotidiano no assentamento: a chuva que transforma tudo em lama; o risco de doenças relacionadas ao esgoto sem tratamento (os moradores utilizam fossas); a falta de transporte público, de posto de saúde, hospital, mercado próximos; a falta de olhar do poder público para suas demandas. Tudo isso prejudica a sensação de estabilidade e de segurança, sobretudo em relação à moradia, cujo acesso está previsto como direito na Constituição brasileira.
O trabalho de Samantha se estende durante o dia. Ela lava e estende as roupas, limpa a casa e faz comida. “Aqui tem muito mosquito, e tento deixar a casa o mais limpa possível. Até para não atrair o mosquito da dengue que tem aos montes. A Sophia pegou uma vez [a doença] e eu três vezes, sendo que a primeira fiquei internada e quase morri”, relata. Este ano, no Brasil, o número de casos de dengue dobrou em relação ao ano passado – sendo mais 3 milhões de pessoas infectadas com a doença. Em Bauru, em 2024, foram registrados cerca de 1.063 casos e 1.210 estão em investigação sob suspeita. Os dados do Painel de Monitoramento das Arboviroses feito pelo Ministério da Saúde são referentes até o meio de março, e a região do Manchester é uma das áreas de grande incidência

Sophia, 9 anos, é uma garota muito carinhosa com a mãe e com quem mais a rodeia. Anseia ser veterinária e Samantha a incentiva ao máximo, vislumbrando para a filha oportunidades que não vivenciou. Samantha conta que sempre quis ser mãe. “Eu cresci em Bauru, nunca saí desse paraíso tropical. Já na infância brincava muito de casinha, de boneca, era o que me davam. De alguma forma, virou meu sonho criar uma família”. Aos 19 anos, planejou ter a filha, quando ainda namorava Richard – seu companheiro. “Pode até parecer loucura, mas eu planejei. A única coisa é que meu marido não sabia dos meus planos “, conta rindo.

Durante a conversa, Samantha também comenta sobre livros que a interessam, como O Diário de Anne Frank, Jogos Vorazes e outros. “Já sonhei muito em fazer uma faculdade, mas a vida aconteceu…”. A fala de Samantha revela uma realidade comum entre jovens que moram em favelas e comunidades: a falta de condições de acesso e permanência em uma faculdade.
Sophia nasceu às 7h56m, com 46 cm e 3,5 kg. “Cabia dentro de uma caixa de sapato”, relembra a mãe. O parto foi difícil para Samantha: começou a ter contrações numa quinta-feira e viu a filha nascer apenas no domingo. Porque o médico achou preocupante, fizeram cesárea. Também relata que amava amamentar e sentia a conexão quando Sophia olhava para ela nestes momentos. “Doeu mais em mim do que nela desmamar”, relembra. Sophia é uma menina vaidosa, como a mãe conta. Gosta de penteados, maquiagem, de roupas, de sair para shopping e parques. Mas nem sempre podem sair, uma vez por mês e olhe lá. A criança gosta de morar no Manchester, de brincar na terra e ter vários amigos ao redor.
Nossa entrevistada pensa em ter outro filho. Porém, leva em consideração a situação em que vive. A fiação da casa é improvisada, por lá não tem chuveiro elétrico. Ela recebe 600 reais por mês do Bolsa Família, programa do governo federal. Diz que, diante das dificuldades de deslocamento e dos baixos salários oferecidos no mercado de trabalho, não vale a pena trabalhar registrado e pagar alguém para cuidar da filha. Ela comenta que, no senso comum, muita gente acredita que as pessoas vivem do auxílio por opção. “[Dizem que] é só arrumar serviço, só pagar aluguel. Se até pra quem tem faculdade tá difícil, para gente que é mãe, é pior”. O marido faz alguns trabalhos em oficina. “Como seria com outro neném? Há oito meses que espero uma consulta para a Sophia, como seria com um bebê que precisa ir todo mês [no pediatra]? Se minha filha ficar doente, precisamos ir andando para o Geisel, que é onde tem o UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e o postinho mais próximo, e fica a uma boa caminhada daqui. E não tem mercado, ponto de ônibus, farmácia ou hospital perto do assentamento. Não temos nem esgoto. Seria possível criar outra criança, mas seria viável?”, questiona a mãe. O Postinho e UPA mais próximo do Manchester fica a 4,5 km de distância do assentamento. Já o mercado mais próximo fica a 4 km dali.
Sophia nasceu em um domingo, era Dia dos Pais. A maior felicidade do casal. Dois meses depois, Richard foi preso. “Fazia coisa errada, né?”, fala Samantha, com um sorriso entristecido. Eles se conheceram quando ela morava com a mãe no Ferradura Mirim, outro bairro periférico de Bauru. Mas ela cresceu no Beija-flor, onde era a casa da avó, junto de seus 4 irmãos. Recentemente, ela e o companheiro completaram dez anos de relacionamento.
Durante a prisão do companheiro, Samantha voltou a morar com a mãe e a irmã. Trabalhava em várias coisas para pagar as contas, ajudar a mãe e o marido. Vendia lingerie, fazia bolo no pote etc. Primeiro, Richard ficou em uma prisão em Bauru. Depois em Jaú. E por muito tempo ficou em Avaré, a quase duas horas de distância de Bauru. Samantha ia toda semana de van, com a neném de um lado e a bolsa cheia do outro. Duas horas que duravam uma eternidade. E ela ia mesmo que estivesse de madrugada, frio ou com chuva. Nunca deixou de levar Sophia também.
Samantha adquiriu um emprego com carteira registrada quando Sophia tinha três anos. A situação financeira ficou melhor na época, e continuou no serviço até o marido ser liberado, quando a filha já havia completado cinco anos.
O casal voltou a morar no Ferradura Mirim por volta de 2018. Nesta época, Richard conquistou emprego em uma serralheria e ganhava o suficiente para manter a família. No novo bairro, devido à distância do emprego, Samantha preferiu sair do trabalho. Durante a pandemia, porém, Richard foi demitido da serralheria. Em meio à crise de covid-19, Samantha perdeu o pai. O cunhado convidou-os para dividirem o terreno dele no Manchester. Com o dinheiro da demissão, adquiriram o necessário para a construção da casa – madeirite, cimento, telhas etc. E, assim, voltaram a reconstruir a vida.
Samantha afirma que o local onde mora é lugar dos seus sonhos, apesar das dificuldades. Enquanto fala, escuta-se a voz do marido ao fundo cantando sertanejo, com as galinhas de um lado para o outro e o tanquinho funcionando. “O que eu gostaria é de ter uma casa melhor. Se me dessem o terreno pelo menos, poderia ficar aqui, construir aos pouquinhos. Gosto da paz, do lugar quieto, com muitos animais, com mato e árvores. Igual aqui”, diz a entrevistada enquanto lava roupas. O desejo de regularizar a situação do terreno e moradia no assentamento está sempre presente em suas falas, e reflete a condição vivenciada por outras moradoras. No assentamento, a maioria é parente ou “como se fosse”, define Samantha.
Ao final do dia, ela vai ao Centro Comunitário do bairro. “Nossa ideia é que no futuro tenham aulas aqui, existe muita gente no bairro que não terminou a escola e não aprendeu a ler”, relata. O espaço foi construído pelos moradores em conjunto com os voluntários do Coletivo Ação Libertária. No dia da entrevista, Samantha também tinha como compromisso participar do mutirão para finalizar as pinturas do Centro. Muitas crianças participaram da ação também e se divertiram aprendendo a tirar fotos com a câmera que levamos até o local. Conversaram, contaram piadas e se trataram com carinho enquanto pintavam duas paredes

Samantha diz não gostar de se envolver com política. Mas, curiosamente, é uma das figuras que sempre debate em rodas de conversa e participa de ações coletivas no assentamento. “O Coletivo [Ação Libertária] me ensina muitas coisas. Democracia, luta de classes, capitalismo etc. É muito fácil de gostar e entender”, afirma Samantha, revelando que o espaço do assentamento é também de ação coletiva e constante aprendizado.